A Japan Association of Translators (JAT), importante instituição que media o trabalho de tradutores envolvidos na conversão de obras do idioma japonês para o inglês e vice-versa, emitiu uma nota a respeito de “tradução em grande volume e exportação de mangás”. Segundo a organização, há uma grande preocupação sua com o “impacto das novas tecnologias na qualidade dos mangás” e em como a “excessiva dependência de tais tecnologias pode tornar a mão de obra humana um recurso dispensável”.
No seu pronunciamento, a Associação apontou como a tradução por IA ainda é deficiente, precisando até então “demonstrar o nível de qualidade requerido para retratar as nuances, o pano de fundo cultural ou as características dos personagens, os quais são essenciais para um trabalho de ficção. Apesar da inteligência artificial acelerar o processo de tradução, a organização adverte que usar “máquinas para despejar quantidades massivas de trabalhos traduzidos em um curto intervalo de tempo arrisca diminuir enormemente o valor do trabalho em si”.
Nesse contexto, é importante lembrar que recentemente a Shogakukan, uma das maiores editoras de livros e mangás do Japão, anunciou investimentos em uma empresa especializada em IA a fim de traduzir mais de 50 mil títulos de mangás durante os próximos 5 anos.
A Associação comentou também que “traduções pobres minam a confiança do consumidor, abrindo janelas para que versões piratas floresçam. Visto que mangás são uma importante faceta da cultura japonesa e um dos vários modos pelos quais as pessoas são primeiramente introduzidas ao Japão, é de toda a importância que as palavras que usamos para contar essas histórias não sejam subvalorizadas”. E ainda sobre o impacto dessa empreitada em profissionais tradutores de mangás, “que sustentaram a indústria por anos”, a JAT diz-se profundamente preocupada com o desprezo negligente de tanta experiência e habilidades acumuladas em troca de redução de custo”.
A declaração da JAT chega em meio a uma onda de grande crescimento de iniciativas envolvendo IA dento da indústria de mangás. No ano de 2023, houve o anúncio de que o mangá de “Mahou Tsukai no Yome” (ou “The Ancient Magus Bride”) receberia um lançamento simultâneo em inglês através de tradução feita por IA; em abril de 2024, a publicadora TO Books anunciou o lançamento do site “CORONA EX for English” como a plataforma online oficial para o lançamento de seus títulos de mangá, que contará com mangás traduzidos tanto por profissionais como por inteligência artificial do Google; e em maio de 2024, houve o já mencionado anúncio de investimentos da Shogakukan, bem como do governo japonês e de outras empresas, na startup Orange Inc. com o objetivo de traduzir dezenas de milhares de mangás em poucos anos.
Em sua declaração, a JAT expõe ainda que é insustentável o uso de tecnologia para traduções mais exigentes, de escritas com enfoque em história, e que são profundamente preocupantes os danos causados ao “soft power” do Japão pelos investimentos públicos e privados no uso de IA.
A Associação concluiu sua nota com a seguinte sentença: “Nós fortemente propomos que agora é o momento para um diálogo cuidadoso e construtivo entre artistas de mangá, empresários (publicadoras), governo, tradutores, organizações de tradutores, leitores e demais partes interessadas para considerar o uso apropriado de IA e tradução automatizada”.
É possível ler a declaração na íntegra e em japonês aqui.
No contexto do Brasil, embora ainda não haja um problema tão grande com traduções feita por inteligência artificial em mangás, já existe um certo problema com o uso de tal tecnologia em legendas de plataformas de streamings em animes. A Crunchyrrol já anunciou a testagem de IA como ferramenta de criação de legendas para os animes disponíveis no seu catálogo e vez ou outra surgem usuários reclamando sobre o quão estranhas e mal feitas são as legendas vistas no streaming, como demonstrado abaixo:
TRADUZIRAM ONI PRA IRMÃO YEEEEEEEEEEEEEEES pic.twitter.com/fC0c3unyIb
— Jandaia🦜 (@SucoJandaia_) May 20, 2024
Considerando todo o exposto, resta torcer para que a indústria chegue a um consenso sobre os perigos inerentes ao uso de IA no contexto de tradução de obras japonesas para o resto do mundo, de forma a preservar o trabalho importante e delicado dos tradutores e o capital cultural perdido na transposição de idiomas feita de modo mecanizado.